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STF e o redesenho do Artigo 19: Liberdade de expressão em risco?
Uma mudança com repercussões profundas
Em junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Tema 987 e declarou, por 8 votos a 3, a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). A controvérsia está em discussão nos Recursos Extraordinários (REs) 1037396 e 1057258. A decisão, embora revestida do discurso de proteção contra crimes digitais e desinformação, representa uma inflexão relevante nos fundamentos da liberdade de expressão e da segurança jurídica no ambiente digital brasileiro.
Para empresas de tecnologia — especialmente plataformas, startups e marketplaces — o novo entendimento judicial impõe novas responsabilidades, novos riscos e novos custos operacionais, que ainda carecem de regulação clara e previsível.
O que previa o artigo 19 e por que ele era importante?
O artigo 19 estabelecia que provedores de aplicações de internet somente poderiam ser responsabilizados civilmente por conteúdos de terceiros se descumprissem ordem judicial específica que determinasse a retirada do conteúdo.
Essa regra não era um escudo para a impunidade. Era uma cláusula constitucional de equilíbrio, que atribuía ao Judiciário — e não às plataformas — o papel de decidir o que é ou não ilícito. Evitava-se, assim, a censura privada, a remoção excessiva de conteúdos e a insegurança jurídica nas relações digitais.
Esse modelo, adotado por países democráticos, colocava o Brasil em posição de referência mundial no tema.
O que o STF decidiu?
Com base na “interpretação conforme a Constituição”, o STF estabeleceu novos parâmetros para a responsabilidade das plataformas. A tese aprovada prevê que:
• Crimes graves (terrorismo, pedofilia, violência contra a mulher, atos antidemocráticos, racismo, etc.) devem ser removidos sem necessidade de ordem judicial, a partir da notificação privada ou, em certos casos, por dever proativo.
• Conteúdo impulsionado (publicidade paga) e disseminado artificialmente (por bots ou IA) gera presunção de responsabilidade da plataforma, independentemente de ordem judicial.
• O artigo 19 permanece válido apenas em crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria — para esses casos, ainda é necessário o ajuizamento de ação judicial para a retirada do conteúdo.
• As plataformas passam a ter deveres de cuidado, como canais acessíveis de denúncia, políticas públicas de moderação, regras claras e representação legal no Brasil.
Em outras palavras, o STF substituiu o modelo judicial por um modelo híbrido, que transfere para as plataformas responsabilidades antes atribuídas exclusivamente ao Judiciário.
Impactos para empresas de tecnologia
A decisão afeta diretamente empresas que atuam no ambiente digital, com destaque para:
• Aumento do risco jurídico: o operador da plataforma poderá ser responsabilizado por conteúdos de terceiros mesmo que não tenha sido previamente acionado judicialmente.
• Moderação preventiva obrigatória: será necessário criar e manter equipes, sistemas e protocolos de detecção e remoção de conteúdo potencialmente ilícito, inclusive com análise de contexto e veracidade.
• Pressão regulatória e reputacional: decisões de remoção ou manutenção de conteúdos precisarão ser justificadas e documentadas, com risco de repercussão pública e judicial.
• Assimetria competitiva: pequenas empresas e startups, que não possuem a infraestrutura de uma big tech, terão mais dificuldade em cumprir as exigências impostas pela nova interpretação.
A crítica: ativismo judicial e insegurança normativa
Apesar da boa intenção da decisão — proteger a sociedade de abusos digitais — o STF extrapolou sua função jurisdicional ao criar um novo regime jurídico, típico de atividade legislativa.
Em vez de simplesmente julgar a constitucionalidade de um artigo criado pelo Congresso, a Corte alterou sua essência, gerando insegurança jurídica e abrindo margem para moderação privada sem transparência ou critérios objetivos.
Além disso, a decisão ignora o risco real de “overblocking”, ou seja, a remoção excessiva e injustificada de conteúdos lícitos, em prejuízo à liberdade de expressão e à pluralidade de ideias.
A defesa do artigo 19 e da liberdade de expressão
O artigo 19, como redigido pelo legislador, já previa um sistema equilibrado: o Judiciário decide, a plataforma cumpre. A responsabilização ocorria quando a plataforma ignorava uma ordem judicial — o que é absolutamente razoável.
A liberdade de expressão — direito fundamental protegido pela Constituição Federal — não deve ser relativizada por interpretações que entregam às plataformas o papel de julgadoras, sem as garantias do devido processo legal.
Nesse sentido, defendemos que o artigo 19 é constitucional e deveria ser mantido integralmente, cabendo ao Legislativo discutir possíveis atualizações, ouvindo especialistas, setor produtivo, usuários e sociedade civil.
Alternativa: o “Devido Processo Digital”
Como resposta construtiva à crescente complexidade das relações digitais, propomos a adoção — por meio de lei — de um Devido Processo Digital, que respeite os direitos dos usuários e estabeleça padrões claros para as plataformas. Esse modelo pode incluir:
• Notificação prévia obrigatória ao usuário antes da remoção do conteúdo;
• Canal de contestação acessível, com análise humana e imparcial;
• Transparência nas decisões, com justificativa clara e publicada;
• Prazos razoáveis para defesa, reanálise e retratação;
• Supervisão externa por conselhos independentes ou instância judicial, em caso de abuso.
Esse caminho evita tanto a censura privada quanto a omissão diante de conteúdos manifestamente ilícitos — e, principalmente, preserva o Estado de Direito na esfera digital.
Conclusão
O STF redesenhou o artigo 19 com a promessa de proteger a sociedade de abusos, mas o resultado pode representar um retrocesso em termos de liberdade de expressão, segurança jurídica e previsibilidade regulatória.
Empresas de tecnologia devem redobrar seus esforços em governança de dados, compliance digital e políticas claras de moderação. No entanto, é urgente que o Congresso Nacional retome seu protagonismo legislativo, para que soluções democráticas e técnicas sejam adotadas, respeitando os princípios constitucionais.
A internet precisa de regras. Mas essas regras devem ser criadas com equilíbrio, legitimidade e respeito aos direitos fundamentais.
Consulte a íntegra das decisões:
A controvérsia está em discussão nos Recursos Extraordinários (REs) 1037396 e 1057258
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217273
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